segunda-feira, 13 de setembro de 2010

“A emoção é negra, assim como a razão é helénica”

ishhyowevodacom 21 de Maio de 2009
Campanha da rede celular em Moçambique, a Vodacom.

O PRESENTE texto é resultado dos debates que tenho tido com estudantes do curso de Ciências da Comunicação, quando abordávamos a temática referente à adequabilidade e eficácia da comunicação. Muitos exemplos sobre Moçambique vieram à tona, mas o slogan da publicidade da Vodacom: “ishh yôwêe!” dominou a carga horária reservada para a cadeira.Maputo, Quarta-Feira, 1 de Setembro de 2010:: Notícias
Porquê? Porque em nosso entender, esse slogan, aplicado na língua portuguesa, pretende transmitir alegria, mas que na língua original – Tsonga - significa o contrário. Há nele uma interjeição de espanto: -ixi - e de dor: yowe. Isto poderá ter criado algum ruído na comunicação entre os falantes da língua Tsonga.

Durante as aulas alguns de nós afirmávamos que o slogan tinha sido feliz, porque eficaz, mas não adequado e outros referíamos que o slogan não era nem adequado, nem eficaz. Dessa discussão surgiu o presente texto que pretendemos que seja uma reflexão em torno dos contornos que aquele slogan pode tomar.

Queremos referir que essa discussão não leva em linha de conta a adesão ou não de clientes ao produto da Vodacom, como resultado do slogan.

Uma das melhores formas de permitir um melhor entendimento do nosso ponto de vista seria a de trazer algumas definições do conceito comunicação. Uma vez que de acordo com Teixeira (2005), “a comunicação é o processo através do qual os gestores realizam as funções de planeamento, organização, liderança e controle” e constitui uma actividade na qual os gestores dedicam grande parte do seu tempo. Ela pode ser caracterizada como o “sangue vital” das empresas.

Nesse sentido, segundo Esperto e Veríssimo (2008) a eficácia da comunicação depende da coincidência entre a mensagem que o emissor quer transmitir e a mensagem interpretada pelo receptor. Mas, porque existem diferentes factores de ruído, estes podem prejudicar o processo através de problemas semânticos, efeito de estatuto, ausência de feedback, distracções e a percepção do outro.

Por outro lado, a adequabilidade e eficiência comunicacional devem respeitar, entre outros factores a fórmula de Laswell (): Quem? Diz o quê? A quem? Através de que meio? Com que finalidade? Onde e Quando?. Além disso o receptor condiciona a forma de comunicação, porque é quem deve descodificar a mensagem. E o processo de descodificação depende muito do carácter, da intuição, dos dogmas ou dos créditos desse receptor.

Assumimos que a finalidade do slogan era angariar mais clientes para a Vodacom e manter os que lá existem. Seria de desejar que a língua usada no slogan fosse entendida por maior número de falantes possível[1]. Isto porque deve-se falar a mesma língua do receptor, circunscrever-se ao seu vocabulário e expressões que lhe são familiares, para que haja esse entendimento. A finalidade da comunicação deve ser evidente, para evitar distorções e mal entendidos (é importante estarem claros todos os porquês de a mensagem estar a ser passada).

No caso do slogan em análise não nos parece que tenha sido cumprido esse pressuposto, uma vez que os falantes de Tsonga poderão ter ficado “intrigados”, dado ao facto de ter havido ruído na comunicação. Tal como mencionámos no início do texto “yowê” é uma expressão de dor, ou melhor, de pedido de socorro perante algo negativo.

Nessa sequência pode-se afirmar que à competência linguística (capacidade de produzir e interpretar signos verbais – fonologia, sintaxe, semântica), faltou aliar a competência comunicativa (capacidade de produzir e entender mensagens que põem o indivíduo em interacção com outros interlocutores, que consiste, não só em produzir e interpretar frases, mas também saber adequar a mensagem a uma situação específica – habilidade social, ou tradução ou utilização de outros códigos para além do linguístico – expressões faciais, movimentos do rosto, das mãos, etc. (Bitti e Ricci – (1993). Isto não aconteceu no caso do slogan: a expressão “ishh yowê” não revela adequação da mensagem aos códigos linguísticos da língua Tsonga, nem `as expressões faciais...dificilmente poderemos encontrar, naquela cultura, alguém que diga “ixi yowe” a rir-se, a menos que tenha perturbações psíquicas.

Além disso não fica enquadrada no slogan o facto de Moçambique ser um país multicultural, foi usada uma expressão de uma língua que não é conhecida pela maioria dos nacionais. Por outro lado, há uma discrepância entre os factores extralinguísticos que devem levar em linha de conta, não só factores sociais e semióticos, como também factores emocionais – que revelem estados de ânimo e que interferem no processo comunicativo (Bitti e Ricci - 1993). A expressão “yowe” não remeteria o tsonga imediatamente à alegria. Assim estamos perante uma expressão que diz algo que contraria os gestos e a emoção (a competência cinésica não foi tomada em consideração). Ou seja, os signos linguisticos (“ishh yôwêe!” ) e não linguísticos (gestos e emoções) não foram usados de modo adequado à situação e às suas próprias intenções.

Pensamos que antes de ser lançado o slogan deveria ter sido feito um estudo etnográfico (se é que não foi feito). Isto porque a etnografia reflecte o facto de que a própria cultura inclui e abrange a totalidade de conhecimentos e práticas. É o enfoque discursivo mais interactivo. Pela explicação apresentada no slogan, em que se usa uma expressão de dor, para transmitir alegria, significa que a comunicação não se efectivou ou seja o acto de transmissão não foi eficaz, daí ter perturbado algum público.

A capacidade de reconhecer um acto de fala faz parte do nosso conhecimento cultural. Usar uma expressão de dor, para significar contentamento só pode demonstrar falta de conhecimento da cultura, por parte da Vodacom.

Além disso, alguma ignorância no processo de publicitação de mensagens, uma vez que não conhecendo a cultura Tsonga, os criativos poderiam ter feito alguma pesquisa.

A etnografia permite-nos fazer isso, por tornar possível a observação de todas as fases e aspectos da comunicação, (do cognitivo ao político) como os significados relativos a cultura. Há que se fazer o cruzamento das diferentes competências acima referidas: comunicativa, linguística, pragmática, cinésica, entre outras.

Hymes (1971) defende que o conhecimento de enunciados não se deve dar apenas no plano gramatical. É importante saber quando o uso de determinados significados ou enunciados é apropriado, isto porque a competência envolve o conhecimento de quando é adequado falar ou não, quando e como é adequado falar com quem, sobre o quê, com quem, quando, onde, como, com que fins e com que meios. E, para o autor, a aquisição deste tipo de competência só é possível graças às experiências sociais.

O autor defende o uso de uma grade usada para descobrir as unidades comunicativas (semelhanças e diferenças de caracteres) na análise das culturas, da língua ou da linguagem humana e que nos permite perceber a interacção da linguagem e da vida social. Esse modelo ou grade segue uma perspectiva funcionalista que se preocupa em explicar o funcionamento da língua num dado momento.

O autor defende que a interacção da linguagem e da vida social deverá resultar da observação e análise do discurso, a partir de rituais, eventos, actos de fala, de onde se pode encontrar semelhanças e diferenças de caracteres na análise das culturas e da língua. Usando o modelo de Hymes a Vodacom poderia ter criado menos ruído com o seu slogan.

Ainda no que concerne a factores sociais, no processo comunicacional, de acordo com Bitti e Ricci(1993) há que considerar crenças e dogmas no acto comunicacional. Olhando para o slogan em análise pode ser que este seja conotado como agourento, se ouvido na rádio, sem o aparato da imagem. Muitas vezes as crenças fazem interpretar as mensagens dessa forma, facto que tem consequência, no entendimento da mensagem.

No entanto, considerando as funções da comunicação (a função interpessoal ou expressiva) pode-se afirmar que uma mensagem nunca é neutra, constitui sempre comunicação entre o emissor desta e seus intervenientes. A musicalidade dada ao slogan e o ambiente festivo em que é apresentado contribui para a sua aceitação.

Há nesse contexto comunicativo, uma interacção entre o significado do que é dito e do que não é dito – o explícito e o implícito (o olhar, o tom de voz, o uso de palavras que marquem comunicam e passam mensagens entre os intervenientes de um acto comunicativo).

Para explicar melhor esta constatação vale a pena lembrar que existem na língua portuguesa expressões como: “matas-me de rir”, que aparentemente exprimem adversidade, mas há algo implícito e que é de índole cultural (e passa pelo uso de uma linguagem conotativa) e permite que falantes dessa língua percebam perfeitamente o que se passa (que o que foi dito causa tanto riso, capaz de “matar” – mas a expressão matar neste contexto não significaria algo negativo). Será essa aproximação que a Vodacom tentou fazer?

Uma questão que se coloca é como é que os gestores da Vodacom vêem, sentem que realizam as funções de planeamento, organização, liderança e controle com um slogan da natureza de “ishh yôwêe!” será que têm o feedback dos seus clientes? Quantos foram angariados após o lançamento do slogan? Pode até ser que tenham entrado vários...infelizmente somos uma sociedade pouco crítica. O ritmo da música pode ter falado mais alto! E não digam que algumas interpretações à frase “a emoção é negra, assim como a razão é helénica” são desprovidas de sentido!

Como dizíamos no início do texto vários foram os exemplos de enunciados produzidos em Moçambique levados para sustentar a inadequabilidade e a ineficácia do slogan da Vodacom, mas pensamos que vale a pena terminar o texto referindo-nos a um spot publicitário menos polémico, na nossa óptica. Não iremos mencionar a empresa que o criou, interessa-nos mais falarmos sobre o exemplo.

É o caso de um spot publicitário que traz um menino magrinho e pequenino que ao carregar um grão de arroz diz: “xa dindza ndjane!” - pesa muito. A ideia com que ficamos é a de que o menino era tão magrinho e tão pequenino que até um grão de arroz era pesado para ele carregar, por isso precisava de comer para crescer ou ficar com um aspecto mais saudável. Pode até haver outras interpretações e é bom que as haja, mas que não nos remetam ao totalmente contrário, pensamos nós!

*Texto elaborado com contribuições dos estudantes: Madina Hussein, Teresa Magaia, Carlos Matias, Shakira Rachid.

BIBLIOGRAFIA

BITTI, Pio: ZANI, Bruna. A comunicação Como Processo Social. Imprensa Universitária. Editorial Estampa. 1993.

ESPERTO, Silvia; VERISSIMO, Rita. Comunicação Organizacional. Instituto Politécnico de Coimbra. Departamento de engenharia Civil. 2008. Coimbra. In: http://prof.santana-e-silva.pt/gestao_de_empresas/trabalhos_07_08/word/Comunica%2525C3%2525A7%2525C3%2525A3o%252520Organizacional.pdf, acesso em 06 de julho de 2010.

MONTEIRO, C; CAETANO, J; MARQUES, H; LOURENÇO, J (2006). Fundamentos de Comunicação. 1ª edição. Edições Sílabo. Lisboa.

TEIXEIRA, Sebastião. Gestão das Organizações. Editora: Mcgraw-Hill. 2005

[1] Sabemos que Moçambique é um país multilingue e que não existe uma língua que ‘e falada e compreendida por todos os moçambicanos.

Sara Jona - Docente universitária

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