FORAM a enterrar na tarde de ontem, (20/02/2008) no Cemitério de Lhanguene, em Maputo, os restos mortais de João Paulo, conceituado músico e intérprete moçambicano do blues, música soul e jazz.
Familiares e amigos, admiradores e amantes da música acompanharam esta figura ímpar no cenário musical moçambicano, tendo, primeiro, rendido homenagem ao malogrado num velório havido na Associação dos Músicos Moçambicanos, cerca de quatro horas. Depois o cortejo fúnebre dirigiu-se ao Cemitério de Lhanguene para o funeral.
Mensagens de condolências, abraços fraternos, silêncio e elogios marcaram este momento carregado de emoção, onde músicos como Wazimbo e os restantes membros do conjunto “Os Monstros” cantaram um dos temas que João Paulo interpretava em vida. Aliás, David Abílio, representando o conjunto no qual João Paulo popularizou-se, disse no seu elogio fúnebre que o malogrado, tal como o seu agrupamento, representa um símbolo de libertação, de auto-estima, da consciência nacionalista e do orgulho negro à juventude moçambicana da década 60/70.
Este conjunto espalhou pelo país a visionária ideia de um Moçambique sem preconceitos, interpretando temas que muito bem vislumbravam o horizonte negro da liberdade, na sua plenitude. Mississipi, Honolulu, Cidade do Cabo, as roças da Guiné são constantemente referidas na sua abordagem temática.
Para João Paulo, explica David Abílio, os ritmos musicais deixam de ser somente puros ritmos para assumir também uma manifestação de consciencialização das gentes negras que vivem empurradas nos seus bairros de lata e caniço de Lourenço Marques (hoje Maputo), desprovidas de tudo, enquanto na zona urbana os colonos reinavam, não dando espaço para a formação e desenvolvimento dos moçambicanos.
Uma das vozes mais autênticas e audíveis em noites de concertos na capital moçambicana, João Paulo encontrou a morte aos 60 anos de idade, na madrugada do dia 18 deste mês, no Hospital Central de Maputo, onde se encontrava internado há dias, para observação médica aos problemas respiratórios que vinham lhe apoquentando.
MORREU na madrugada de 17/02/2008 em Maputo, o músico moçambicano João Paulo. Uma das vozes mais autênticas e audíveis em noites de concertos na capital moçambicana, João Paulo encontrou a morte no Hospital Central de Maputo, onde se encontrava internado há dias, para observação médica aos problemas respiratórios que vinham lhe apoquentando.
Fonte da família disse, em contacto com o nosso Jornal, que, depois de várias intervenções médicas em cuidados intensivos, o músico não resistiu, tendo acabado por sucumbir à doença. Entretanto, ainda não foi marcada a data das exéquias fúnebres.
Nascido em Julho de 1948, na então Lourenço Marques, João Paulo Macamo, de seu nome completo, é tido como um dos principais e mais importantes intérpretes musicais da nossa praça. Iniciou-se na música na década 60, integrando várias bandas como Djambo e o conjunto Arco-Ìris, onde chegou a ser baterista.
Em finais de 1967 é convidado a integrar o agrupamento “Mártires”, que depois adoptou o nome de “Os Monstros”, na qual passa a ser o vocalista principal.
Foi nesta banda e ao lado de nomes como João Pais, também já falecido, que João Paulo tornou-se num dos mais importantes vocalistas do nosso país. Basta recordar que com “Os Monstros” ele actuou em todas as províncias do nosso país e faz digressões por alguns países do continente africano e pela Europa.
Em 1978 emigrou para a vizinha África do Sul, onde deu continuidade à sua carreira.
Anos depois “JP”, como era conhecido e tratado em roda de amigos, regressa a Moçambique onde continua a emprestar a sua voz, cantando temas de gerações anteriores à sua, da sua própria geração e ainda dos mais jovens músicos do mundo musical.
Nas noites de concerto que se realizam nas “casas de pasto”, com particular realce para o “Café Gil Vicente” e o “África-Bar”, locais onde ele muito frequentava, João Paulo reavivava a memória de muita gente, rebuscando na sua “gaveta” canções há muito esquecidas de grandes nomes do Jazz e do Blues. Vai daí que ele se tenha tornado numa figura ímpar no nosso cenário artístico, ganhando, deste modo, o epíteto de “Blues-Man”.
O músico deixa dois filhos, por sinal também músicos, nomeadamente Wilson Douglas Paulo, a viver na Espanha, e Eurico Paulo.
JOÃO PAULO (1948-2008): Calou-se a voz moçambicana do blues.
A MORTE do músico João Paulo abre um precedente na nata dos intérpretes do blues. Mais ainda quando se sabe que aquele blues-man perdeu a vida sem ter registado nenhum disco. No entanto, ele continuará a habitar o imaginário daqueles que com ele privaram e a ser o mestre de muitos que estiveram ao seu lado nas lides musicais.
João Paulo foi um músico com características ímpares, entretanto, pouco entendido na sua sociedade. Ele regressa ao pó com toda a sua bagagem de conhecimentos, restando somente os pedaços que foi espalhando na roda de amigos e nos concertos em que participava.
Antes de entrar para o mundo da música, onde singrou, João Paulo passou pelos relvados do então Sporting de Lourenço Marques, o actual Maxaquene, como júnior. Abandonou o futebol depois de ter contraído uma grave lesão, o que levou a mãe a impedi-lo de continuar a jogar. Para compensar este desaire, e porque nascera numa família religiosa, fazendo parte do coro juvenil da Igreja Missão Suíça, João Paulo decide aprofundar os seus dotes de músico, fazendo ensaios e a ir buscar os dotes técnicos naquele que considera ter sido o seu mestre: Gabriel Chiau. Era um princípio de uma carreira brilhante na qual ainda jovem teve a oportunidade de estar ao lado de figuras como Eneas Comiche, Inácio Magaia, Joel Libombo. Mas também o fervor musical alia-se à Igreja e as gentes da sua comunidade em Marracuene. Esse fervor acabou se aliando a literatura e a arquitectura que muito admirava. Mais tarde procura trabalhar com famosos conjuntos como o Djambu, onde chegou a ser um dos integrantes, João Domingos, também por onde passou.
A PAIXÃO PELO SOUL MUSIC
A paixão pelo soul music inicia quando um tio seu lhe ofereceu um disco do lendário blues-man norte-americano Ray Charles e de um outro músico argelino. Foi quando o músico começou a ganhar consciência de quão penosa era a colonização a que os moçambicanos estavam submetidos pelos portugueses. Isso acontece numa altura em que, ganhando consciência política, o músico começa a ouvir falar e a ler Patrice Lumumba, Kwame Nkrumah e o poeta senegalês Leopold Sedar Senghor. Tudo isto aliado fez com que o músico adoptasse um estilo de música com tendências afro-americanas.
Na década 70, e ao lado de figuras como Arlindo Malote, Adolfo Macaringue, António Manjate, João Pais e Máximo Marcelo, João Paulo funda a banda “Os Monstros”, desintegrando-se assim o conjunto “Mártires”.
Esta banda jovens irreverentes da década 60-70 torna-se, em tão pouco tempo, numa das chamas vivas do soul-music.
Percy Sledje, James Brown, Otis Redding, Frank Sinatra, John Lee Hooker, Louis Armstrong, Ray Charles são algumas das figures que “Os Monstros” vão buscar para fazerem parte do seu rico e vasto repertório.
Deste modo, esta rapaziada passa a ser constantemente chamada para tocar em lugares de elite da então cidade de Lourenço Marques. Liceus e pavilhões, Casa do Algarve, nos Maristas, Parque José Cabral (Parque dos Continuadores) são alguns dentre os vários locais que “Os Monstros” passam a frequentar.
Aliás, basta recordar que esta foi a primeira banda de negros a conseguir actuar em locais onde só tocavam brancos, porque frequentados somente por eles. A partir daí passam a rivalizar com outros conjuntos como “AEC-68”, “Impacto” e “Alta Tensão”.
E porque esta rapaziada já lia histórias da Negritude, do Pan-Africanismo e do Nacionalismo, começa a nascer n’Os Monstros a ideia do nacionalismo moçambicano, passando a usar a sua música como um instrumento de luta pela causa dos direitos cívicos e raciais, à despeito do que acontecia nos Estados Unidos da América. Nessa altura começa a morrer o complexo de inferioridade no seio dos jovens negros moçambicanos.
VIVEU INTENSAMENTE A VIDA - ANA MAGAIA, ACTRIZ DE CINEMA
Fui apanhada não propriamente de surpresa porque sabia que ele andava doente, mas pela ideia da morte. E para mim fica registado o facto de João Paulo ter sido um artista muito pouco explorado no nosso país. Conheci-o quando eu ainda era muito nova, pois ele tocava ao lado dos meus tios Magaia. E tive a oportunidade de privar com ele várias vezes, quando ele ensaiava com os meus tios Carlos e Inácio. Calou-se a voz do blues e do jazz. Ele perdeu a vida sem gravar nenhum disco, mas há pessoas que vivem muito intensamente a vida. Às vezes nós criticamos essas pessoas pela forma como levam a vida, mas elas são felizes nas suas opções. E foi o que aconteceu com João Paulo, que viveu intensamente a vida, mas quem sabe se ele foi mais útil assim do que quem tem cinco a sete discos gravados?
ERA UM FIEL INTÉRPRETE DO BLUES - ALEXANDRE CHAÚQUE, JORNALISTA
João Paulo era uma das grandes vozes que existia no panorama nacional. Um fiel intérprete do blues e do jazz. Ao mais alto nível. João Paulo era um boémio irreverente. Ele assumia isso. Mas também João Paulo era um indivíduo agradável de se estar com ele. Um autêntico contador de histórias. Histórias da sua vida e da vida de outros músicos. Quando estivesse em palco era impossível ficar indiferente à ele, pela sua forma característica de estar e pela forma trepidante como fazia ouvir a sua voz. Aqueles que gostam dum bom blues nunca se esquecerão de João Paulo. Tanto como um grande Homem e como um grande artista. São aquelas coisas que as palavras não descrevem.
VAI PERMANECER NA MEMÓRIA DOS SEUS AMIGOS - GABRIEL MONDLANE, CINEASTA
Sempre admirei e continuarei a admirar e a respeitar João Paulo, mesmo depois da sua morte. Ele era dono de uma bagagem cultural ímpar, o que muitos – sobretudo os mais novos – não souberam e nem aproveitaram. Muitos não souberam quem foi, de facto, João Paulo. Ele sempre foi igual à si, e o exemplo é que mesmo depois de passados tantos anos ele continuava com a mesma expressão, tornando-se leve no palco e intelectualmente são. Um homem aventureiro e conhecedor de muitas coisas da vida, com uma carreira rica de aprendizagens e ensinamentos, pena é que não tenha sido entendido. Sinto que João Paulo vai permanecer na memória dos seus amigos e de todos os seus colaboradores na arena cultural e artística.
CULTIVAVA AO EXTREMO O HUMANISMO - FERNANDO MANUEL, ESCRITOR E JORNALISTA
João Paulo representa uma fase mais descrita e bela da minha juventude. Lembro-me que fazia poupanças para aos domingos e ir vê-lo cantar, em matinés dançantes, no actual Pavilhão de Estrela Vermelha e em bailes de finalistas nos liceus.
Na década 70, devido á perseguição da PIDE, o conjunto “Os Monstros” foi obrigado a incorporar-se, compulsivamente, no serviço militar.
Só muito mais tarde, depois do seu regresso da Suazilândia e África do Sul, para onde emigrara afim de dar continuidade à sua carreira, é que pude estabelecer uma relação de amizade. Uma amizade que se tornou bastante profícua.
Pessoa bastante culta, João Paulo falava com muita sabedoria de todos os músicos que interpretava as suas canções e contava a história dos respectivos temas. Cultivava ao extremo o humanismo, embora fosse um rebelde, o que lhe “possibilitou” a construção de uma imagem de bandalho.
Lembro-me também que João Paulo falava profundamente e com paixão da saga dos escravos nas plantações do canavial nas américas.
Ele foi uma das melhores vozes que passaram por aqui. E foi uma voz inconfundível e não abria a mão sobre a sua condição de artista. Não se vendia. Dizia muitas vezes que não canto por dinheiro, de tal maneiras que levava uma vida desvairada financeiramente. João Paulo viveu por amor à vida e cantava por amor à arte.
Esta situação faz com que diga que a nata intelectual moçambicana perdeu um grande membro. Perdeu um amante da vida. Da vida nocturna, das borboletas e da felicidade.
Nós aceitávamos a o calvário da vida como uma filosofia da própria vida.
Ele tinha me escolhido para ser uma das pessoas que escreveria a sua biografia. É com muita tristeza que falo disso porque já estávamos a organizar e sistematizar os dados para isso.
Por Fernando Manuel
NAQUELA madrugada chuvosa de finais de Fevereiro, sentados lado a lado na esplanada do GOA, figurávamos dois náufragos solitários tenazmente agarrados às suas tábuas de salvação: dois copos cilíndricos de base dura, cano curto dentro do qual tremeluziam cubos de gelo dentro de um líquido amarelo açafrão: uísque.
De tempos a tempos, um par de faróis tresmalhados de um carro tresmalhado levado por alguém ainda mais tresmalhado passava em frente pela faixa lateral arrancando revêrberos de cristal da água sobre o asfalto e, tão silenciosamente como surgia, assim se deixava engolir pela distância, a luz que rareava.
Silêncio.
Silêncio quebrado apenas pelo chicotear das bátegas da chuva de encontro ao asfalto, ao cimento do passeio, as copas lacrimejantes das acácias.
Ele virou-se para mim e disse, sem me olhar: “ sabe, mano: há muita gente que não acredita, mas a verdade é que sou muito tímido “.
Olhei para ele e quis que o meu olhar lhe dissesse: “ não gozes comigo, J.P”. Ele deve ter percebido porque, quase sem transição, passou a contar-me que uma vez, estando a abrilhantar as noites de um hotel em Windoeck, sob contrato, aconteceu detectar, todas as noites, entre os convivas, um “ monumento de mulher. Era uma mulata herero, por quem caí de beiço”.
Amor platónico, pois nunca se atreveu a dirigir-lhe palavra, embora ela o não desfitasse nunca.
“ Um dia, depois de cantar, entro nos bastidores e quem vejo? Ela.”
Ficou “ literalmente paralisado. Ela riu-se e disse-me: fala, homem!Pareces embaraçado “.
Ele abriu a boca e disse: “ chamo-me João Paulo. “Ela: “oh! Isso eu sei” .
João Frederico Paulo Macamo, natural de Marracuene, onde nasceu em Julho de 1947, da “ linhagem dos guerreiros Matavel “, como dizia frequentemente, nos últimos tempos.
Ele tinha-me escolhido – eleito? – para seu confidente, a fim de organizar e escrever as suas memórias. Aceitei a incumbência, na condição de passarmos muitas horas a conversar informalmente sobre si, a sua vida, os seus amores, altos e baixos da vida, para poder atacar com conhecimento de causa quando chegasse o momento.
Aprendi muito para além da sua história pessoal: levou-me várias vezes ao delta do Mississipi, familiarizou-me com a saga dos escravos negros nas plantações do sul dos EUA, as letras dos blues e soul, a história pessoal, profundamente humana nos seus contornos de tragédia sublimada na arte dos autores cujas músicas cantava, compartilhei com ele os dramas que a vida nos vai impondo alimentando o nosso estado de rebeldia nato e irredutível.
E os longos, longos momentos de silêncio, manhãs e tardes e madrugadas imensas.
A aprendizagem iniciática na Igreja Presbiteriana, anos 60, como o regista Paulo Manhiça no livro Marrabentar, a orquestra Djambo, os anos 70 a demarcar espaço em Lourenço Marques com os Monstros, os cabarés e clubes depois do 25 de Abril, a “ humilhação “ que o Samora infligiu ao seu grupo numa soirée no Hotel Polana, quando exigiu que executassem tangos e valsas para dançar, quando os jovens, animados pelos gritos de “ abaixo a cultura estrangeira” tinham alinhavado um bom naipe de marrabentas e zucutas e foram postos, literalmente, no olho da rua com ele entre as pernas – “ nunca me vou esquecer disso, mano. Acredite” – as perseguições do SNASP, que ditaram a “fuga” para a Suazilândia, daqui para a África do Sul, Portugal, os festivais de cerveja na Alemanha e na Austrália e depois…o regresso a casa!
A mesma voz, o mesmo estilo de vida, os amigos – poucos mas bons – a irredutível veia de boémio: “ não há mal que nos chegue, mano”.
E não há mesmo: já no período da outra senhora, quando alguém chamou a atenção dos jovens Monstros para o facto de que a banda estava sob a alçada da PIDE, que lhe preparava a cama, esta alistou-se em bloco para o serviço militar…quase todos como voluntários, visto que ninguém tinha ainda idade para ir à tropa.
E fizeram à tropa à grande e à francesa: percorrendo de lés a lés todo o norte de Moçambique, a cantar para levantar o moral das tropas! Ri-se: “ creia, não disparamos nem um tiro “. E ri-se de novo, aquele riso profundo que lhe saia do fundo do peito, um tchinguito de rouquidão, um travo de amargura sem desfalecimentos gratuitos…
Na manhã de domingo, 17FEV08, caiu-me o iceberg em cima, lacónico no visor do telemóvel: “ morreu João Paulo, cantor de blues e soul music”.
Deixa um cd por gravar, cujos preparativos, já na fase final, tinham-lhe a adrenalina em alta nos últimos tempos. E um filme sobre a sua vida, feito por um jovem realizador que não largava os calcanhares do JP, fosse onde fosse.
Chorar para quê? Não há mal que nos chegue…
SAVANA – 22.02.2008
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