segunda-feira, 14 de fevereiro de 2011

Viagem ao âmago da nossa identidade identidade cultural


2010 é o ano da marrabenta há um festival da marrabenta, há um comboio da marrabenta e até “artistas unidos” pela defesa da marrabenta.

Os puritanos consideram que se está a registar uma deturpação no uso do termo “marrabenta”, para designar qualquer forma de expressão cultural de índole moçambicana, em termos de música ligeira. Até que ponto isso é verdade?

(...) e da noite para o dia, a marrabenta – ou pelo menos o termo marrabenta – começou a ser falado e propalado em todos os cantos. Um fenómeno sem precedentes, pelo menos a nível dos últimos tempos. “Ele” é Festival da Marrabenta”; “ele” é comboio da marrabenta, “ele” é artistas unidos e empenhados em fazer deste 2010 o ano da marrabenta, enfim! agora, falar de marrabenta é o que está a dar.

Porém, a questão que se coloca é a seguinte: até que ponto toda esta empolgação em torno da marrabenta contribui para a valorização e evolução da marrabenta entanto que estilo musical com características próprias? Será correcto atribuir-se a designação genérica de marrabenta para rotular qualquer forma de expressão cultural de índole moçambicana, em termos de música ligeira?

De uma coisa ninguém duvida, a marrabenta é um ritmo de música-dança que passou por várias fases, desde a sua criação até à actualidade. A As suas origens devem remontar aos finais da década de 30, mas será a década de 50 que a leva ao sucesso, tornando-a um dos produtos mais representativos da música ligeira moçambicana.

Dizem os conhecedores que a marrabenta tem um estilo próprio, uma batida característica que é sintetizada pelo tema “Elisa Gomara Saia”, do Conjunto Djambu. Este será o ícone, a matriz e o protótipo do que é a verdadeira marrabenta. Pelo menos é assim que pensa Rui Guerra, investigador, mestrado em Gestão do Património Cultural Moçambicano, pela Slinders University (Adelaide, Austrália), com quem conversámos e em cuja tese (de licenciatura) nos baseamos em larga escala para a elaboração deste trabalho.

QUEM, QUANDO E ONDE
Há muita controvérsia em redor desse assunto: quando e onde surgiu e quem criou a marrabenta? Há quem diga – e esta versão nos parece a mais coerente – que a marrabenta deriva directamente da mescla dos estilos magika e zukuta (sim, é antigo!). Para outros, a marrabenta foi simplesmente a evolução desses ritmos, ou seja, teria começado por se chamar zukuta, depois magika e finalmente marrabenta.

Também é difícil atribuir a alguém em particular a invenção deste ritmo. De uma maneira mais generalista, pode considerar-se que ele é produto da miscigenação cultural e da migração de grupos étnicos oriundos de diversas regiões do sul de Moçambique, e que a sua estilização contribuiu para que se tornasse popular.

A transformação e penetração da marrabenta no meio urbano deve muito ao movimento migratório de jovens de origem rural e suburbana (Manhiça, Marracuene, Inhambane, Gaza) para a cidade de Lourenço Marques, onde trabalhavam à espera de contratos para as minas.

Este grupo de emigrantes é de facto importante neste processo de introdução de novos ritmos, instrumentos e aparelhos - como a viola e os gramofones -, os quais eram enviados para as suas terras de origem, juntamente com os discos, contribuindo decisivamente para a divulgação no meio rural destes novos sons e instrumentos.

INFLUÊNCIA DOS TROVADORES
Os trovadores – executantes a solo – são os precursores da música ligeira moçambicana, antes mesmo do surgimento dos agrupamentos. Músicos como Muthanda Feliciano Ngome, Francisco Mahecuane Macovela e Fani Mpfumo constituem os precursores da música ligeira moçambicana, dado terem sido os primeiros músicos a gravar, apesar de fora de Moçambique.

Mahecuane gravou, pela primeira vez, em 1945, na África do Sul, o disco “Yi Xibalo Muni Makhandane” e em 1958, no seu regresso definitivo a Lourenço Marques, torna-se famoso com o tema “Moda Xicavalo, Marrabenta, Senta Baixo”, uma das primeiras marrabentas a serem tocadas e a alcançar sucesso, apesar de apresentar uma orquestração básica, envolvendo apenas guitarra e bandolim.

Outro artista de nomeada foi, sem dúvida, Fani Mpfumo. É o caso de maior sucesso, visto ter atingido o estrelato na África do Sul, com vários prémios ganhos, para além de ser visto em Moçambique como uma verdadeira estrela, tanto pelos mineiros que traziam na bagagem os seus discos, como pela população local que ouvia os seus números na rádio.

Para além de interpretar ritmos sul-africanos como jive, simandjemandje, kwela, etc., Fani tocava marrabenta. De tal modo que o seu primeiro disco, gravado em ronga, em 1951, foi “Georgina Waka Nwamba”, tendo a música que dá o título ao álbum obtido grande sucesso. Outros números de sucesso também se seguiram, como: “Nyoxanini”, “Famba ha Hombe”, “Hodi”, “King ya Marracuene”, “Nichelelani”, entre outros.

Pela sua veia compositora, versatilidade e pelo número de discos publicados, Fani Mpfumo foi considerado o verdadeiro rei da música ligeira moçambicana, apesar de ter estado emigrado por largos anos, tendo voltado definitivamente ao país em 1973. O resto é sabido: a sua ligação à música continuou até à altura da sua morte, em 1987, vítima de doença.

AS ETAPAS POSTERIORES
O período que vai do limiar dos anos 60 até 1974 é tido como o da divulgação e promoção da marrabenta. Efectivamente, a marrabenta passa a ser dançada e ouvida por negros e brancos sem preconceitos de qualquer espécie. Passa a ser vista como a verdadeira música de Moçambique e dos moçambicanos, daí que tenha começado a ser promovida pelo empresariado local.

É nesse quadro que, em 1971, é criada a “Produções 1001”, vocacionada à procura e promoção de talentos moçambicanos. Aí são descobertos artistas hoje famosos, como Wazimbo, Simião Mazuze, Jaimito, Pedro Ben, Alexandre Mazuze, Elsa Mangue, Matchote, João Wate, Abel Tchemane, entre outros.

Surgem, então, dois programas, destinados à população suburbana e à população citadina, nomeadamente, o “Xitimela 1001”, que se realizava no Cinema Olímpia, e o “Expresso 1001” que acontecia no Cinema Nacional (actual Centro Cultural Universitário).

A REVOLUÇÃO E A MARRABENTA
Depois da Independência, a marrabenta foi, supreendentemente, desqualificada, ao ser considerada um produto da cultura burguesa decadente pelo governo revolucionário. Aí se deu o grande marco da descontinuidade. Para o bem ou para o mal, a verdadeira marrabenta foi então profundamente abalada.

Não obstante, e numa fase em que tudo escasseava e as dificuldades por que passavam os artistas eram brutais, por iniciativa do Estado, foi criado o Conjunto RM, congregando uma série de músicos, nomeadamente, José Guimarães, Alípio Cruz, Chico António, Mingas, Zeca Tcheco, Wazimbo, Matchote, Milagre Langa, Sox, José Mucavel, Alexandre Langa. Nessa fase, surgiram ainda os grupos Hokolókwè, Mbila, Alambique e Ghorwane, caracterizados pela produção de temas e músicas de caris moçambicano.

Depois disso, vieram outros e mais outros, até se chegar aos dias de hoje, onde a profusão de estilos e ritmos é abismal. São todos (?) bons. São todos representantes da música moçambicana – se por mais não seja, porque são moçambicanos – mas são raros os que tocam aquilo a que se considera marrabenta.

E porque, conforme dissemos, se passou a atribuir aos ritmos tocados a designação genérica de marrabenta, os puritanos consideram que está a registar-se uma deturpação do uso do termo, para designar qualquer forma de expressão cultural de índole moçambicana, em termos de música ligeira. Será isso correcto?

Enfim, tire o leitor as suas próprias ilações.

Os conjuntos e a estilização da marrabenta
Os conjuntos musicais e as associações culturais tiveram grande influência na difusão e, sobretudo, na estilização da marrabenta. Como já se disse, o ritmo começa a ser “urbanizado” em finais da década de 50, quando surgem os primeiros conjuntos moçambicanos, como Young Issufo Jazz Band, Orquestra Djambu, Hulla-Hoop (que passou a Conjunto João Domingos), Conjunto Harmonia e Kenguelequêze, que começam a tocar ritmos locais, para além dos internacionais, que então estavam em voga.

É a partir desse momento que a marrabenta é divulgada, deixando de ser conhecida, dançada e tocada apenas nos subúrbios. A sua entrada para as associações, neste caso a Associação Africana e o Centro Associativo dos Negros da Província de Moçambique, muito contribuiu para a sua promoção, pois deixa de estar confinada ao subúrbio. Isto é, sai do caniço e entra no cimento.

A adopção da marrabenta pelas associações foi incentivada por duas importantes figuras do meio cultural moçambicano: José Craveirinha, na Associação Africana, e Samuel Dabula Nkumbula, no Centro Associativo. Culturalmente esclarecidas e politicamente conscientes, estas figuras defendiam que os agrupamentos que ali se exibiam deviam tocar ritmos moçambicanos.

O Young Issufo Jazz Band foi o primeiro conjunto, constituído por indivíduos de raça negra. Foi formado em 1956 como um quarteto, passando para sexteto, em 1957, ano em que se viria a desmembrar, porque Young Issufo, o líder, optou por tocar num baile de finalistas, no Liceu Salazar, enquanto os outros componentes do grupo preferiram tocar no Centro Associativo dos Negros. A sua dissolução deu origem à Orquestra Djambu e ao Conjunto Hulla-Hoop, os quais se tornaram famosos a tocar marrabenta.

A Orquestra Djambu nasceu em 1958 e começou por tocar jazz e blues. A marrabenta só seria tocada mais tarde, sendo o seu tema mais emblemático “Elisa Gomara Saia”. Já o Conjunto Hulla-Hoop – que mais tarde passou a designar-se Conjunto João Domingos – foi fundado por Young Issufo, Gonzana e João Domingos, também em 1958. Entre os seus números, destacam-se: “Júlia”, “Jorgina”, “Tampa ni Xicandarinha”, “Massoriana”. Curiosamente, este grupo só viria a gravar o seu primeiro CD no ano de 2000, captado num show ao vivo, em Macau.

Ainda em 58 surgiu o Conjunto Harmonia. De acordo com Gabriel Chiau, um dos integrantes desta banda, que ainda se mantém no activo, este era o mais humilde dos três conjuntos, mas tocava de forma mais original.

Sexta, 12 Fevereiro 2010 Homero Lobo.

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