sexta-feira, 11 de janeiro de 2008

Joao Paulo, a Voz de Ouro

Abordamos o músico, para uma entrevista, a que ele gentil e prontamente acedeu, falando do que tem sido o seu percurso ao longo das cerca de quatro décadas em palcos do país e não só. Mostrou-se de certo modo desapontado, particularmente pelo desempenho pouco profissional das pessoas que têm como responsabilidade promover o trabalho dos músicos em Moçambique. O nosso entrevistado entende por outro lado que o Governo devia desempenhar um papel mais activo nesse âmbito. A seguir passamos as partes mais significativas dessa conversa com o rasta-man, que também aceita – e gosta – que lhe tratem JP.

JP no Gil Vivente

- João, explique antes de mais nada como veio parar por estas bandas de Gaza?

- Antes de mais permita-me que eu mande um grande abraço de reconhecimento, especialmente a equipa médica que se encarregou da minha saúde ao longo destes três meses aqui em Xai-Xai. Vai efectivamente do fundo do coração um grande agradecimento a toda a equipa médica que me assistiu, especialmente ao jovem cirurgião doutor Manhiça, que me restituíram a vida e a vitalidade que volto a ostentar. Para todo aquele aparato clínico o meu maior respeito e consideração. Sobre o que vim apanhar aqui em Xai-Xai é sem dúvidas o resultado de um excelente trabalho que vem sendo desenvolvido nos últimos dois anos pelo doutor Ivo Garrido, ministro da Saúde.

- É um cantor muito referenciado no nosso país desde a década de 1960, em que entrou para a música. Como é que entra para a arte?

- Gostaria de dizer que antes de ingressar para o mundo da música, passei pelos campos de futebol, tendo jogado na década 60 no então Sporting de Lourenço Marques, o actual Maxaquene, como júnior, porque nessa época era sonho de qualquer jovem tentar chegar aos patamares alcançados por ídolos e figuras incontornáveis do nosso futebol que, aliás, atingiram patamares ao nível mundial ao serviço de Portugal. Me refiro concretamente ao Eusébio da Silva Ferreira, ao Mário Coluna, Vicente Lucas, Costa Pereira, apenas para citar alguns exemplos. Estive integrado no mundo da bola até que contraí uma grave lesão durante um jogo amigável no antigo bairro Indígena (Munhuana), e a minha mãe nunca mais quis que eu voltasse a tocar na bola, pondo fim à minha carreira ainda emergente. Muitos não conheciam esta faceta da minha vida. Para compensar este desaire, e porque era muito religioso naquela altura, e continuo a ser apesar de não aparecer com frequência na Igreja, e porque então fazia parte do grupo coral da Missão Suíça, onde descobri a minha vocação e paixão pela arte de cantar, pela mão do grande músico moçambicano Gabriel Chiau, recebi as primeiras lições que acabariam por ditar a frequência das minhas aparições no mundo da música em Moçambique e além fronteiras. Trilhei esses caminhos com grandes figuras que hoje são grandes dirigentes políticos, casos dos doutores Eneas Comiche, Joel Libombo, Inácio Magaia, por aí fora. Uma grande força igualmente de Marracuene, minha terra natal, porque os meus pais e outros familiares que os rodeavam fervilhavam pela música devido à influência que lhes foi imposta pela Igreja. as esse fervor acabou sendo aliado ao gosto que sempre tive pela leitura e arquitectura, o que me conferiu que ao mesmo tempo que tentava seguir com seriedade o percurso da música, com apoio de grupos como o Djambu e João Domingos, acabei fazendo no Instituto Victor Ribeiro o curso de desenho civil, outra minha grande paixão, facto que apenas foi possível graças a apoios multiformes que tive na altura do arquitecto Márcido Guedes, um dos mentores da cidade de Maputo.

JP numa das suas ultimas apresentacoes, no video com Rhodalia.


- Mas quando é começa a paixão pela soul music?

- Tudo começou quando um tio meu me ofereceu um disco de Ray Charles e de um músico argelino que dizia numa das canções que África era para os africanos, Europa para os europeus, a América para os americanos e Ásia para os asiáticos. Foi então quando comecei a ganhar consciência de quão penosa era a colonização a que estávamos submetidos pelos portugueses. Nessa altura eu já ouvia falar com alguma insistência de figuras como Patrice Lumumba, Kwame Nkrumah e do grande poeta e dirigente senegalês Leopold Sedar Senghor. Esta foi a razão que me levou muito cedo a adoptar um estilo de música com tendências afro-americanas.

- Quando é que começa a subir aos palcos com mais frequência?

- Muita gente pensa que eu comecei a cantar nos Monstros. Não, não e não. Eu devo realçar aqui as oportunidades que então me foram dadas pelo conjunto João Domingos e pela orquestra Djambu, no início da década 60. Eles viam em mim alguém que merecia uma oportunidade para se lançar efectivamente na música. Só no início da década 70 é que fundamos os Monstros na companhia do Adolfo viola baixo, com Arlindo Malote na bateria. A música era um lobbie para mim porque eu trabalhava na construção civil, no Prédio Santos Gil.

- Neste momento me parece viver apenas da actividade musical, será que é mesmo possível viver-se em Moçambique exclusivamente de música?

- Se lhe dissesse que sim estaria a trair-me a mim mesmo, porque efectivamente o que está a acontecer é uma tentativa de sobrevivência. Continuo a dizer que o nosso Governo deve ser mais actuante neste âmbito, concebendo que a nossa actividade é de um contributo inestimável para o país e para o nosso povo. Que os músicos desempenham igualmente um papel determinante na busca de soluções para a melhoria de vida, mas estes estão pura e simplesmente votados ao abandono. Devo ainda dizer que, infelizmente, a classe dos empresários ligados ao mundo do espectáculo está simplesmente pautando pela mediocridade. Os empresários da área que levam esta actividade com a necessária seriedade são ínfimos, o que é uma grande pena, mas vamos vivendo mesmo assim.

- Pelos vistos não está mesmo satisfeito com o actual estágio da nossa música?

- As coisas podiam estar muito melhor do que estão hoje, se efectivamente tivéssemos empresários com qualidade, infelizmente não é o que está a acontecer, para a frustração total da classe, daqueles que efectivamente encaram a música com a necessária responsabilidade. Sobre a música que se produz hoje, tirando um e outro talento, de uma maneira geral a situação é crítica. Pouco ou nenhuma criatividade, mas acredito que esta é uma tempestade que num futuro próximo irá passar, e aqueles que têm estado a promover essa mediocridade irão compreender que a música vale quando é, efectivamente, moldada com todos os condimentos. É assim em qualquer parte do mundo e acredito que aqui no nosso país a razão da verdade irá vingar e nós nos poderemos afirmar no mundo da música, reconquistando o lugar que nos é devido. Mas repito que isto passa necessariamente por termos uma classe empresarial com esta cultura e, sobretudo, é imperioso que o Governo assuma um maior protagonismo em defesa e promoção da actividade musical, como parte de uma actividade que muito pode trazer para o nosso país e não. Gostaríamos de ver cada vez mais actuantes dos nossos dirigentes, só assim é que poderemos ver valorizada a nossa classe.

- O que achou da actividade musical em Xai-Xai durante os cerca de três meses em que esteve aqui?

- Antes de falar desse pertinente assunto, gostaria de endereçar uma palavra de carinho e de reconhecimento para todos aqueles que ao longo deste período me prestaram todo apoio para que a recuperação do meu estado de saúde fosse uma realidade. Encontrei em Xai-Xai uma enorme paz de espírito e uma solidariedade espectaculares. Respondendo à sua questão diria que à semelhança do que está a acontecer na capital do país e pelo país fora, a ausência de uma classe empresarial à altura faz com que também em Xai-Xai os artistas enfrentem as mesmas dificuldades. E a situação torna-se mais grave ainda em relação a esta cidade devido ao atraso em que se encontra a urbe e a província em geral, originado principalmente pelas destruições ocorridas durante as cheias de 2000. As instalações do Clube de Gaza, que durante muito tempo eram como uma espécie de catedral de artes e letras, sofreram, aliás, um duplo golpe. Primeiro com as cheias e depois com o incêndio que devorou por completo a única sala de cinema de que dispunha a cidade de Xai-Xai. Vai ser necessário um grande trabalho para se reconstituir um vasto rol de infra-estruturas ligadas à actividade cultural no geral e musical em particular, cabendo ao empresariado local um papel de extrema importância. Mas em Xai-Xai não vi apenas dificuldades, quero deixar aqui o meu reconhecimento pelo excelente trabalho que vem sendo feito pelo jovem empresário Sérgio, que neste momento tem estado a desenvolver um excelente trabalho, visando resgatar o protagonismo na realização de espectáculos que sempre caracterizaram Xai-Xai, em particular, e Gaza, em geral. Por outro lado, algumas casas de pasto vão paulatinamente assumindo a necessidade de devolver à Xai-Xai os velhos e saudosos momentos de entretenimento salutares. Figuras como o grande empresário Mansur Daúde, Amílcar, este último proprietário do Miau-Miau, devem ser apoiadas e acarinhadas pelo Governo nas suas iniciativas, para que continuem a dar o seu contributo no mundo dos espectáculos.

In, Noticias de 12 de Setembro 2007

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